A importância da hidratação no montanhismo

O montanhismo engloba atividades como a escalada, o trekking, a corrida de aventura e o canionismo, que têm em comum o contato com a natureza e os desafios impostos pela atividade e pelo ambiente – sendo essa combinação um dos principais atrativos para seus praticantes. As práticas de montanhismo envolvem os riscos calculados que incluem, por exemplo, o nível de dificuldade de uma via de escalada ou o nível técnico de uma travessia. Estes riscos ainda englobam os riscos fisiológicos presentes em cada atividade e cada condição de prática .1 

A compreensão dos riscos fisiológicos envolvidos no montanhismo e o desenvolvimento de estratégias para sua mitigação tornam-se especialmente relevantes ao considerarmos que, nas últimas décadas, tem sido reportado um aumento global da adesão a essas atividades , como a 2 escalada, o trekking, a corrida de aventura e o canionismo – uma tendência mundial que parece ser acompanhada pelo Brasil. Um dos riscos fisiológicos encontrados na prática do montanhismo é a desidratação. Para compreendermos o processo da desidratação e a importância da manutenção do estado de hidratação durante uma atividade física, vamos abordar brevemente alguns dos conhecimentos da fisiologia do exercício e da termorregulação. Segundo a literatura, com uma perda de 20% de água pode ocorrer a morte do indivíduo, e uma perda de apenas 10% causará distúrbios severos. A água é um elemento essencial para o funcionamento dos organismos vivos, mantendo a constância física e química dos líquidos intra e extracelulares, com uma função direta na manutenção da temperatura corpórea, e estruturando os processos fisiológicos de digestão, absorção e excreção. Tem papel na estrutura e função do sistema circulatório e age como um meio de transporte para nutrientes e de todas as substâncias corpóreas.

Na prática do montanhismo, assim como em outras atividades de longa duração, realizadas em dias quentes e úmidos, ocorre o aumento da temperatura corporal, que é consequência da produção de calor gerado pelo esforço físico. Um dos principais mecanismos de perda de calor, necessários para regular a temperatura corporal, se dá pela produção de suor e a sua subsequente evaporação . Como 99% do suor é composto de água, se a água não é reposta 3 adequadamente durante as atividades, a sudorese pode levar à desidratação. A desidratação pode afetar o desempenho esportivo (por efeitos como a redução da produção de força muscular e do tempo de reação) e o desempenho cognitivo (inexatidão na tomada de decisões), o que pode acarretar acidentes graves. Outros sintomas da desidratação são dor de cabeça e sonolência. A desidratação influencia a capacidade termorreguladora, devido à redução da capacidade de redistribuição do fluxo sanguíneo para a periferia e redução da sensibilidade hipotalâmica para a produção do suor. Por consequência pode representar um risco de hipertermia (temperatura corporal acima de 40º C), durante um exercício prolongado, constituindo-se uma situação potencialmente fatal .4 

É interessante notar que os riscos relacionados à desidratação não estão presentes somente em ambientes quentes e úmidos, mas também em condições de baixas temperaturas como comumente acontece na região sul do Brasil e em locais de montanhismo conhecidos por suas elevadas altitudes, como o Pico da Bandeira na Serra do Caparaó, com registros de temperaturas mínimas de até -4°C . Apesar do frio do ambiente externo, o isolamento 5 térmico promovido pelas roupas, em associação com o esforço físico (que resulta em produção de calor), leva ao aumento da temperatura interna e à consequente produção de suor. Nesse sentido, recentemente o grupo de pesquisa MEDIANTAR (Medicina, Fisiologia e Antropologia antártica) da Universidade Federal de Minas Gerais , observou, em uma coleta 6 de dados em campo realizada no verão, na Península Antártica (com temperaturas variando de 

-15 a 5 °C), que durante o deslocamento/caminhada de um grupo de pesquisadores (indivíduos brasileiros não-treinados), é mantida uma temperatura de cerca de 30 °C entre a primeira camada (segunda pele) e a última camada de roupas (corta-vento) o que é considerado um microclima quente. No frio, é preciso ainda considerar que além da perda hídrica por suor, as baixas temperaturas inibem o estímulo dipsogênico (de sede), o que pode contribuir para a redução do estado de hidratação .7 

Um ponto importante em relação à termorregulação nessas condições é que, como a retirada de calor é dependente da evaporação do suor, a barreira física produzida pelas vestimentas isolantes reduz o gradiente para a evaporação da sudorese, dificultando a regulação da temperatura interna. Vale ainda notar que a baixa evaporação do suor resulta em acúmulo de suor na superfície corporal, o que pode ser absorvido pelas roupas, umedecendo as vestimentas e contribuindo para um resfriamento subsequente, quando finalizada a atividade física. A diminuição do estado de hidratação também pode facilitar a ocorrência de ferimentos na pele pelo frio, já que a redução do volume plasmático pode induzir a vasoconstrição periférica, reduzindo o fluxo sanguíneo para as regiões periféricas e acentuando o resfriamento da pele que pode potencializar as lesões decorrentes do frio, o Frostbite .8 Um ponto a ser destacado, é que durante a realização do exercício físico de longa duração em ambientes térmicos estressantes, seja no ambiente quente ou frio, o mecanismo da sede pode não ser o suficiente para a reposição das perdas hídricas decorrentes da sudorese, podendo acarretar a desidratação involuntária . A desidratação, além de ser desencadeada por 9 mecanismos fisiológicos, é também, regulada por fatores comportamentais, ou seja, o costume, ou ato voluntário da pessoa para se hidratar.

Assim, para que os riscos decorrentes da desidratação sejam reduzidos é preciso que os praticantes de esportes estejam atentos à sensação de sede, tenham água de fácil acesso, se possível em temperatura agradável para a ingestão (o que pode variar de acordo com o ambiente), e em abundância. O American College of Sports Medicine, (1996) sugere que 10 nas duas horas antecedentes ao exercício, deve-se ingerir aproximadamente 500mL de líquidos para que os riscos da desidratação sejam reduzidos. Assim, uma sugestão é que você parta para sua atividade – seja em ambiente quente ou frio – hidratado e, durante sua prática, atente-se à sensação de sede e ao tempo transcorrido desde a última ingestão de água, especialmente nos ambientes que possam reduzir o estímulo dipsogênico .11 

Ygor Antônio Tinoco Martins – Graduado em Educação Física e mestre em Ciências do Esporte pela Universidade Federal de Minas Gerais. Integrante do grupo Medicina, Fisiologia e Antropologia antártica (MEDIANTAR). Projeto aprovado através do edital 442645/2018–0, financiado e apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).

1 RAUCH S, WALLNER B, STRÖHLE M, DAL CAPPELLO T, BRODMANN MAEDER M. Climbing Accidents-Prospective Data Analysis from the International Alpine Trauma Registry and Systematic Review of the Literature. Int J Environ Res Public Health. V.17, n.1, p.203, 2019.

2 DIAS, C. A. G. Esporte e ecologia: o montanhismo e a contemporaneidade. Recorde: Revista de História do Esporte, v. 2, p. 1-27. 2009. 

3 TAYLOR, N.A. Human heat adaptation. Compr. Physiol., v. 4, n. 1, p. 325–65, 2014.

4 SILAMI – GARCIA, E.; RODRIGUES L. O. C. Hipertermia durante a prática de exercícios físicos: Riscos, sintomas e tratamento, Rev. bras. ciênc. esporte., v. 19, n. 3, 1998. 

5Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO) – Parque Nacional do Caparaó HTTPS://ICMBIO.GOV.BR/PARNACAPARAO/NATUREZA-LOCAL.HTML. 

6 Medicina, Fisiologia e Antropologia Antártica. HTTPS://SITES.ICB.UFMG.BR/MEDIANTAR/ 

7 YGOR A. T. MARTINS; RENATA L. F. PASSOS; ALICE L. MARQUES; DAWIT A. P. GONÇALVES; THIAGO T. MENDES; CRISTIAN N. ESPINOSA; LUIZ O. C. RODRIGUES; SAMUEL P. WANNER; MICHELE M. MORAES; ROSA M. E. ARANTES; DANUSA D. SOARES. A 32-day long fieldwork in Antarctica improves heat tolerance during physical exercise” em sua forma atual para publicação nos Anais da Academia Brasileira de Ciências.

8 HANDFORD. C.; BUXTON, P.; RUSSELL. Frostbite: a practical approach to hospital management. Extrem. Physiol. Med., v.3, p.7, 2014 

9 MACHADO-MOREIRA, C. A.; VIMIEIRO-GOMES, A. C.; SILAMI-GARCIA, E.; RODRIGUES, L. O. C; Hidratação durante o exercício: a sede é suficiente? Rev. bras. med. esporte. V. 12, n. 6, p. 405-409, 2006. 

10 American College of Sports Medicine Position Stand: Exercise and fluid replacement. Med. Sci. Sports Exerc., p. 29:1-11, 1996.11 YGOR A. T. MARTINS. RENATA L. F. PASSOS. MICHELE M. MORAES. LUIZ O. C. RODRIGUES. DANUSA D. SOARES. ROSA M. E. ARANTES. Hidrate-se! Mesmo no frio antártico, manter a hidratação é fundamental. Informativo APECS-BRASIL. Ano XI; Edição 1; Janeiro a junho de 2020. Arquivo PDF: https://12c2c7c5-22b0-ac14-671e-df469fff3def.filesusr.com/ugd/51b1e9_51d230058bd145e6907f61a1e01b21c1. pdf